Três palestras sobre a Constitucionalização do Direito Civil
O novo Código Civil à luz da hermenêutica constitucional, 2003
STRECK, Lenio Luiz. Direito civil, direitos sociais e a Constituição: novos paradigmas a luz da hermenêutica juridica.
BARROSO, Luis Roberto. Aspectos constitucionais do novo Código Civil.
FACHIN, Luiz Edson. Contrato, titulariedade e família: da codificação à constitucionalização
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Direito civil, direitos sociais e a Constituição: novos paradigmas à luz da hermenêutica jurídica contemporânea
(em digitação...)
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Aspectos constitucionais do novo Código Civil
Eu tenho muito prazer de estar aqui e partilhar algumas idéias e algumas reflexões sobre o tema que eu rebatizei de Hermenêutica Jurídica, Constituição e o Novo Código Civil.
Conta uma lenda amplamente disseminada, eu suponho, pelos civilistas, que um cliente teria entrado certa vez em uma livraria muito tradicional e pediu um exemplar da Constituição. E o vendedor olhou para ele com o olhar grave e disse: senhor, infelizmente não vendemos periódicos.
E provavelmente é por essa experiência que nós outros temos de trabalhar com legislação nova, com novas normas, com o advento de uma nova normatização em alguma matéria que justifica o convite honroso que foi feito a mim para estar aqui e participar desse debate.
Nessa matéria, é verdade, os constitucionalistas têm experiência - já tivemos oito constituições - e a última, a de 1988, já sofreu 39 emendas. Até hoje pela manhã, porque há uma quadragésima emenda em votação. Portanto, no direito constitucional brasileiro é até possível morrer de susto, mas de tédio - jamais. E é para essa reflexão constitucional, para esse olhar constitucional sobre o direito civil que eu vim aqui essa tarde.
O Código Civil entrou em vigor em janeiro desse ano. Devo dizer que eu já havia estudado esse Código Civil em 1984, ou 1985, quando fiz o meu concurso para Procurador do Estado. Porque todo concursando é um ser paranóico. E eu imaginei: vai que o examinador faça uma pergunta sobre o Novo Código Civil. Porque o concursando é um sujeito que acorda no meio da noite e pergunta: ai, meu Deus do Céu, e se o nu-proprietário não participar da eleição do cabecel? Que é uma coisa que jamais acontecerá, salvo neste universo pervertido de quem vai fazer o concurso, e imagina que todos os demais são pervertidos também. E às vezes até são. Pois bem, deixei o Código Civil de lado nesses todos anos porque a melhor doutrina civilista, os autores de direito civil mais progressitas tinham uma visão severamente crítica do NCC e fizeram literalmente uma campanha para que ele não fosse aprovado. Os dois civilistas, ou dois dos civilistas do meu coração participaram dessa campanha. O professor Gustavo Tepedino escrevendo sobre o Novo Código Civil, referiu-se a ele como retrógrado e demagógico. E fez uma apelo ao presidente da república para vetá-lo. E o professor Luiz Édson Facchin, que aqui está presente, elaborou um parecer, concluindo pela inconstitucionalidade do Código Civil por dois fundamentos que se pode destacar. O primeiro de que o Código Civil novo não traduzia a supremacia que o princípio da dignidade da pessoa humana devia desfrutar sobre as relações patrimoniais. E que ademais, em algumas áreas, o Código violava o princípio da vedação do retrocesso. E, portanto, não me pareceu conveniente estudar esse Novo Código Civil a menos que ele de fato se tornasse lei. E ele se tornou lei. E, portanto, todos nós vivemos uma corrida para entender o Novo Código Civil.
Eu uma vez disse, num discurso de formatura que a vida é feita de vitórias e de derrotas. E que há muitas lutas depois da vitória. E, graças a Deus, existe vida depois da derrota. E, portanto, já que o Código Civil foi aprovado e tornou-se lei, o melhor que pode fazer o conjunto de pessoas que pensa o direito de uma forma construtiva é procurar interpretar - construtivamente - esse Código Civil e transformá-lo num instrumento de bom direito. Portanto, e a esse tipo de interpretação do Código Civil e a esta associação que se deve fazer entre o Código Civil e a Constituição que eu vou dedicar esta exposição.
De modo que o capítulo que damos início agora, que é o terceiro desta exposição intitula-se Constituição e Código Civil: discutir a relação (está na moda!)
O Direito Civil é herdeiro da tradição milenar representada pelo direito romano. Mas o direito constitucional é um direito de formação recente. O constitucionalismo moderno remota das revoluções liberais. Na verdade, somente após as revoluções liberias é que surgiu o objeto do direito constitucional, que foi a própria Constituição escrita - a primeira, a americana, de 1787, e a segunda, a francesa, de 1789. As revoluções liberais têm, como todos sabemos, como marco simbólico a Revolução Francesa de 1789. Interessantemente, a Revolução Francesa, que representa um marco no direito constituicional, porque a partir dela se desenvolve a idéia das Constituições escritas, é também um marco do direito civil porque foi, logo após a Revolução Francesa, no início do período Napoleônico, que surge o grande monumento que, durante muito tempo, presidiu o direito civil, que foi o Código napoleônico de 1804.
Nada obstante essa contemporaneidade entre o surgimento das constituições escritas e o surgimento do Código Civil napoleônico, a verdade é que o direito civil e o direito constitucional integravam e integraram por muito tempo mundos à parte. A Constituição era tida mais como documento político que, no máximo, regia as relações entre os cidadãos e o estado; e o Código Civil, este sim, no centro do sistema jurídico, era tido como a Constituição do direito privado. Nesta fase, não se reconhecia, como pesteriormente veio a se reconhecer, a normatividade da Constituição e, portanto, a sua incidência sobre os diferentes ramos do direito e sobre as diferentes relações jurídicas em geral.
Portanto, no seu primeiro momento, as relações entre a Constituição e o Código Civil estruturavam-se sob um modelo de incomunicabilidade: havia o mundo da Constituição e havia o mundo do direito civil.
No entanto, nas últimas décadas verificou-se - e esste é o quarto capítulo da minha exposição - a ascensão científica - e política - da Constituição, com a conseqüênte perda da centralidade do Código Civil.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, teve início, sobretudo na Alemanha, o processo pelo qual a Constituição foi progressivamente sendo transferida para o centro do sistema jurídico. Em primeiro lugar, pelo reconhecimento de força normativa às suas disposições. A tradição européia, da qual o Brasil foi herdeiro, diferentemente da tradição americana, não tratava a Constituição como um conjunto de normas jurídicas. A Constituição era tratada como um conjunto de programas de ação, como uma convocação aos poderes políticos para que atuassem. Não se reconhecia à Constituição aplicabilidade direta e imediata.
A partir da Segunda Guerra Mundial, esse fenômeno muda de feição e passa-se a reconhecer normatividade, força normativa à Constituição, simultaneamente a fase na qual se cria, na própria Alemanha e em outros países da Europa, diversos tribunais constitucionais, tribunais encarregados de exercer o controle por ação direta e incidental da legislação, de uma maneira geral. Portanto, a Constituição tem neste período pós-guerra, o marco inicial da sua transição para o centro do sistema. O no Brasil, o Código Civil, cuja vigência é de 1917, foi, progressivamente, ele próprio, alijado da centralidade dentro do próprio direito civil, porque começaram a ser desenvolvidos inúmeros microssistemas, como por exemplo, no direito de família, o Estatuto da Mulher Casada, a Lei do Divórcio, a Lei de Alimentos, a Lei da União Estável - todas essas normas fora do Código Civil. Depois, desenvolveu-se o Código do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Locações - vale dizer, importantes domínios, cobertos pelo direito civil, já não estavam mais abrigados dentro do Código. E como conseqüência, o Código Civil perdeu parte dessa sua centralidade no sistema.
E a partir de 1988, com a redemocratização do Brasil, aqui se passou o mesmo processo que na Europa ocorrera logo depois da Segunda Guerra Mundial, que foi a ascenção científica e normativa da Constituição e a sua passagem para o centro do sistema, onde passou a desfrutar não apenas de uma supremacia formal, que a Constituição sempre teve, mas uma supremacia axiológica, de uma supremacia fundada na observância obrigatória, por todos, dos valores arbrigados no texto constitucional. Ocorreu no Brasil, portanto, com a Constituição de 1988, o fenômeno que alguns autores batizam de filtragem constitucional. Um fenômeno pelo qual a Constituição deve ser vista não apenas como um sistema em si, mas também como a lente através da qual se devem ler todos os demais ramos do Direito. Quando se ouve falar em constitucionalização do direito civil ou em constitucionalização do direito processual, por exemplo, esse fenômeno não identifica propriamente o fato de que há na Constituição normas de direito civil ou normas de direito processual. Ele identifica, na verdade, a circunstância de que as normas do direito civil e as normas do direito penal passaram a ser relidas e reintrepretadas à luz dos princípios e dos valores previstos na Constituição. E, portanto, no direito civil, por exemplo, passou a ter centralidade na interpretação de todas as suas normas, o princípio da dignidade da pessoa humana, que operou uma repersonalização - para usar o termo do Facchin - do direito civil correspondente a uma despatrimonialização do direito civil. O direito civil deixou de ser, por excelência, o domínio tutelar do patrimônio e passou a ser um espaço importante de afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana.
E com isso nós chegamos ao quinto capítulo da minha exposição, que é a hermenêutica jurídica e nova interpretação constitucional.
Tenho uma notícia importante: toda interpretação jurídica é interpretação constitucional. Eu gosto brincar, e algumas pessoas já ouviram-me dizer isso, que meu pai, quando eu comecei a minha vida, me dizia: meu filho, precisa parar com esse negócio de fumar, ser Flamengo e o direito constitucional também não vai levá-lo a parte alguma. Estuda processo, ele me dizia. E a verdade é que nós demos a volta por cima e hoje em dia já não há mais nada de verdadeiramente importante que se possa pensar ou fazer em termos de direito no Brasil que não passe pela capacidade de trabalhar com as categorias e os princípios constitucionais. Toda interpretação jurídica é interpretação constitucional. E é muito fácil demonstrar a tese. Interpreta-se a Constituição, em todas as situações, ou diretamente ou indiretamente. Interpreta-se a Constituição diretamente quando uma determinada pretensão se funda nela. Alguém postula uma imunidade tributária; alguém postula uma aposentadoria por tempo de serviço; alguém postula uma determinada situação de isonomia. Todas essas são pretensões fundadas diretamente na Constituição e para solucioná-las, o intérprete-juiz terá de interpretar a Constituição.
Mas interpreta-se, também, a Constituição indiretamente em todos os demais casos, por sempre que uma pretensão se funda em uma norma infraconstitucional o juiz, o intérprete terá de proceder a duas interpretações, a duas operações constitucionais. A primeira: ele só poderá aplicar a norma infraconstitucional se ela for compatível com a constituição e, portanto, há uma operação de controle de constitucionalidade sempre embutida na aplicação de uma norma infraconstitucional. E em segundo lugar, ele deverá interpretar a norma infraconstitucional visando a preservar os valores e a realizar os fins constitucionais. Umas das modalidades de eficácia de uma norma constitucional é condicionar a interpretação do direito infraconstitucional. Portanto, toda interpretação jurídica é, em última análise, uma interpretação direta ou indireta da Constituição.
Acertada esta premissa, que me parece muito importante, convém identificar o estado da arte, hoje, em matéria de interpretação constitucional. Interpretação esta que envolve a utilização de alguns conceitos clássicos e tradicionais, mas que envolve também, o domínio de um conjunto importante de idéias que já dominou a doutrina e começa a dominar também a prática jurisprudencial.
A interpretação constitucional tradicional, a interpretação jurídica tradicional funda-se em um modelo de regras, que são aplicáveis mediante subsunção por um juiz, cujo papel é revelar o sentido da norma e fazê-la incidir no caso concreto. Analiticamente esta definição pode ser exposta da seguinte forma: o modelo jurídico tradicional é fundado em regras porque regras normalmente descrevem condutas. E o modelo é de subsunção porque o raciocínio da interpretação jurídica normalmente é um raciocínio silogístico, em que a lei é a premissa maior, o fato é a premissa menor e a sentença é a conclusão. O papel do juiz neste processo tradicional não é de criação do direito, é uma atuação de conhecimento: ele vai à norma, identifica no seu relato abstrato a vontade da norma e enquadra os fatos na norma, produzindo um resultado jurídico. Esta é operação que todos nós fazemos na nossa rotina de vida. E ela é suficiente e adequada para resolver uma boa quantidade de problemas. Mas não todos; e especialmente não os problemas constitucionais. É que, hoje em dia, a moderna dogmática jurídica já não trabalha mais sob a premissa de que toda norma jurídica tenha uma única interpretação, que estabeleça um único resultado para uma determinada situação. A moderna interpretação jurídica, hoje, entende que em muitas hipóteses, o relato da norma é uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. E é fácil exemplificar: é que as normas, em geral, as normas constitucionais em particular e, já agora, o Código Civil, servem-se muitas vezes de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados - ordem pública, segurança jurídica; ou utilizam princípios que são normas distintas das regras, porque os princípios em lugar de descreverem condutas, eles elegem valores ou indicam fins sem descreverem a conduta. O que mudou nessa nova interpretação constitucional? Mudou o papel do intérprete, porque esses conceitos indeterminados, essas cláusulas gerais precisam ser intergradas à vista do caso concreto pela vontade subjetiva do juiz. Quando o Estatuto da Criança e do Adolescente determina ao juiz que decida conforme seja o melhor interesse da criança o que se está fazendo é transferindo para o juiz parte da competência consistente em fazer escolhas, escolhas que só podem ser feitas à vista do caso concreto. Quando a norma diz - o melhor interesse da criança; ou quando a norma diz - a decisão que melhor satisfaça a justiça; ou quando a norma diz - a solução que corresponda à redução das desigualdades sociais, está na verdade transferindo para o juiz o poder de elaborar escolhas.
E, por fim, o último conceito que gostaria de introduzir é que os princípios constitucionais, numa ordem democrática, muitas vezes tutelam valores contrapostos. A Constituição brasileira protege a livre iniciativa, mas prevê a intervenção do Estado; consagra o direito de propriedade, mas prevê a função social da propriedade; consagra a liberdade de expressão e informação, mas também o direito de privacidade. Uma ordem jurídica democrática, portanto, terá princípios que tutelam valores contrapostos e que entrarão em linha de tensão. Quando duas normas constitucionais, dois princípios, dois direitos fundamentais entram em linha de colisão não há uma solução in abstrato no ordenamento para esta colisão. Só à vista dos elementos do caso concreto será possível o juiz escolher - aqui deverá prevalecer a liberdade de expressão; ou, aqui deverá prevalecer o direito de privacidade. É preciso, portanto, fazer ponderações de valores para saber o que deve prevalecer à vista do caso concreto.
Fazendo, portanto, um resumo sumário do que acabo de dizer:
a) a nova interpretação constitucional trabalha com cláusulas gerais, trabalha com princípios e, portanto, a sua aplicação aumenta o papel do intérprete, dá a ele algum grau de discricionariedade que consiste em revelar o sentido da cláusula geral no caso concreto, ou fazer ponderações de princípios no caso concreto; e transfere para o juiz o dever de fundamentação adequada, de argumentativamente demonstrar que produziu a melhor solução.
Esta, portanto, é a idéia de nova interpretação constitucional contraposta à da interpretação tradicional. A interpretação tradicional é um modelo de regras em que a operação intelectual do intérprete é de subsunção: enquadrar o fato na regra. Mas a interpretação constitucional moderna dá muitas vezes a primazia do fato sobre a norma, porque a solução não estará na norma in abstrato, e aumenta a discricionariedade judicial e, conseqüentemente, o seu dever de, argumentativamente, mostrar que a solução que ele escolheu é a que melhor realiza a vontade do caso concreto.
Esta não é uma exposição específica sobre interpretação constitucional e eu não quero aprofundar essas idéias e nem fugir do tópico central que nos une aqui.
Capítulo VI: O Novo Código Civil e a Introdução de cláusulas gerais e normas de princípio.
De acordo com a melhor doutrina o Novo Código Civil introduziu duas posições, ou apresenta duas características marcantes, do ponto de vista metodológico. A primeira foi a unificação dos direitos das obrigações. A segunda foi a importação do direito civil dessa técnica que passou a dominar o direito constitucional que é a do emprego das cláusulas gerais. O Código Civil apresenta inúmeras cláusulas gerais e algumas delas passaram a figurar como cânones interpretativos do direito civil. São elas: a proteção dos direitos da personalidade, introduzidos no Novo Código Civil; conceitos como o da função social da propriedade; a função social do contrato; e um conceito valiosíssimo, que vale tanto para o direito privado quanto para o direito público que é o da boa-fé objetiva. Como conseqüência, o direito civil passou a precisar ser interpretado utilizando algumas dessas cataegorias, que eu me referi, integram a nova interpretação constitucional, a saber: a qualificação in concreto do sentido das cláusulas gerais, porque boa-fé objetiva não é um conceito que no relato abstrato da norma resolva todas as situações. É preciso ver, especificamente, o caso concreto. E, além disso, o direito civil passou a ser interpretado a luz de princípios como o da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade.
Portanto, o direito civil, hoje, apresenta algumas características comuns com o direito constitucional. Além dele dever ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, ele passou a ter princípios próprios e passou a ter conceitos indeterminados que funcionam como cânones interpretativos do próprio direito civil. E aqui é preciso fazer um esclarecimento antes de passarmos para o capítulo final - e mais emocionante - da minha exposição.
Os princípios como o da dignidade da pessoa humana, princípio como o da solidariedade social, princípio como o da justiça; princípios como o da razoabilidade passaram a permitir que o juiz, recebendo da norma um mandato para fazer a justiça do caso concreto, pudesse, muitas vezes, adaptar a rigidez normativa do modelo de regras para fazer a justiça do caso concreto. Um princípio como o da solidariedade, um princípio como o da dignidade da pessoa humana ou da razoabilidade dão ao intérprete uma flexibilidade para fazer a justiça do caso concreto. Não é um cheque em branco porque há parâmetros estabelecidos para cada um deles, às vezes mais rígidos, às vezes menos rígidos. Mas a ordem jurídica ideal deve ser composta de um conjunto amplo de regras, porque as regras representam a segurança jurídica e a previsibilidade; e um conjunto de príncípios, porque os princípios dão a flexibilidade que permitam a justiça do caso concreto. Se tudo for princípio a insegurança é geral; se tudo for regra a flexibilidade para fazer a justiça do caso concreto inexiste. Portanto se diz que a ordem jurídico-ideal hoje é um sistema aberto de regras e princípios na dosagem certa para que se preserve o equilíbrio entre a segurança jurídica e a justiça.
Eu disse, no início da minha exposição, que a Constituição e o direito civil viveram durante muito tempo em regime de separação absoluta de bens. O direito civil e o direito constitucional não se comunicavam - ou não se comunicaram por muitas décadas (mais de um século). Mas esta é uma situação que mudou. A grande novidade na interpretação jurídica hoje do direito civil é precisamente a sua relação com a Constituição, é o fato de que o direito civil, como os demais ramos do direito, mas aqui nos interessa o direito civil, passou a ter a sua interpretação condicionada pela Constituição e pelos princípios constitucionais.
E aí surge o tema, que o capítulo final desta minha exposição, que diz respeito às relações entre direitos fundamentais e relações privadas. Quando ouvirem uma referência, ligeiramente pernóstica, como é comum no nosso meio, a coisas como - a eficácia horizontal dos direitos fundamentais - a eficácia horizontal dos direitos fundamentais quer dizer a aplicabilidade ou não dos direitos fundamentais previstos na Constituição às relações privadas.
Suponham que um clube de futebol proíba os jornalistas de dois veículos de comunicação de ingressarem nas suas dependências em dias de treino, porque os jornalistas desses dois meios de comunicação vinham fazendo muitas críticas à equipe, e, conseqüentemente, o vice-presidente desse clube proibiu o ingresso de jornalistas desses dois veículos. Interessantemente, os jornalistas dos demais veículos de comunicação, todos , podiam ter acesso às dependências. Temos uma situação da maior complexidade aqui que envolve determinar se e até quanto os direitos fundamentais devem interferir com as relações privadas. O que o clube de futebol pode invocar em favor da sua posição? Pode invocar: o clube é uma entidade privada, uma sociedade civil, portanto uma instituição de direito privado. As dependências do clube são propriedade privada. Aqui vigora a autonomia da vontade, porque esse é o grande princípio que rege as relações privadas. E todos estaríamos de acordo.
Os jornalistas dirão: a Constituição assegura a liberdade de expressão e de informação. Ademais, também nesse caso, está sendo violado o princípio da isonomia, porque o meu concorrente pode entrar, mas eu não posso cobrir os treinos desse time de futebol. E, como conseqüência, o judiciário deve assegurar o meu direito de ingressar no estádio. Esta é tipicamente uma situação de conflito, uma situação que exige ponderação de normas e de valores, cuja premissa teórica para a solução é saber se os direitos fundamentais, se os direitos constitucionais incidem ou não na esfera privada, porque se incidirem o jornalista tem de entrar; se não incidirem prevalece o direito de propriedade e a autonomia da vontade.
Há outros exemplos, todos difícies, quase todos difícies. Suponham que uma escola judaica proíbam a matrícula de qualquer criança que não seja de origem judaica. Se for tratado como um domínio privado essa decisão ela é legítima. Se, se impuser a aplicação do princípio da isonomia nessa esfera, ela é ilegítima.
Suponha que uma empresa estabeleça, preveja no seu contrato de trabalho que as suas empregadas mulheres não possam se casar porque se casarem esta será justa causa para a demissão. Ou pior: não podem engravidar, pois se engravidarem será justa causa para a demissão. Ou suponham - esse é um caso concreto ocorrido na França - que um testador deixe um bem para uma determinada pessoa com a condição de que não se case com ninguém de origem muçulmana. Claro, basta não receber a herança, mas isso não resolve o problema jurídico de saber se a cláusula é legítima ou não é legítima.
Estes exemplos que eu dei, alguns têm solução singela e alguns têm solução extremamente difícil. Um caso difícil, no sentido técnico, é aquele caso que envolve princípios contrapostos, é aquele caso em que duas pessoas de boa-fé podem produzir soluções totalmente diversas. E se uma norma permite que se produzam soluções totalmente diversas, e não há como evitar, a legitimação da atividade judicial se transfere para a teoria da argumentação. Vale dizer, a capacidade de um juiz demonstrar que aquela solução que ele escolheu é a que realiza adequadamente a vontade constitucional. E, em um caso, poderá ser aplicar um direito fundamental na esfera privada, e em outros casos poderá não ser. Suponham que o entendimento dominante seja de que o princípio da isonomia se aplica na esfera privada, mas não pode ser apicável na extensão máxima. Por exemplo, um pai terá de dar sempre presentes equivalentes para os seus filhos; se levar um filho ao cinema tem de necessariamente levar o outro, mas o filme é proibido para o outro, então ele tem de ir duas vezes ao cinema. Portanto, há espaços em que a transposição automática dos direitos fundamentais para as relações privadas simplesmente não poderá funcionar. E há espaços em que ele deverá funcionar.
A dificuldade nessa matéria tem sido formular uma regra geral que sirva a diferentes situações e liberte o intérprete das situações de casuísmos. Existem três posições doutrinárias nessa esfera, eu diria, de relações entre o direito civil, o direito privado e as relações privadas e o direito constitucional e os direitos fundamentais que a Constituição consagra.
A primeira posição é a de que os direitos fundamentais só valem para as relações que envolvam o Estado e, portanto, não valem nas relações estritamente privadas. Esta é a linha de entendimento que prevalece majoritariamente nos Estados Unidos, na Suíça e no Canadá: direitos fundamentais só quando estão contrapostos às relações entre o Estado, a administração, e o particular. Exige-se, essa a expressão americana, uma state action, é preciso que tenha um ato estatal para que se possam invocar direitos fundamentais. A doutrina evoluiu e alcança também os atos que o particular pratique por delegação estatal. Mas em linhas gerais, nesses países o conflito se resolve da seguinte forma, um exemplo suíço: uma casa de exibição de filmes sofria críticas severas e constantes de um jornalista especializado em programação de cinema. O jornalista um dia comparece à sala de sessão e o proprietário impede o seu acesso dizendo, “democraticamente”: pra falar mal de mim não entra. Este jornalista vai a juízo e postula, em nome da sua liberdade de expressão, o direito de ingressar na casa de espetáculos. Neste caso concreto o tribunal suíço entendeu que prevalecia o direito de propriedade e a autonomia da vontade e, portanto, se a casa de espetáculos pertence àquela pessoa (na verdade, era um casal) eles poderiam simplesmente proibir o ingresso de quem quer que desejasse lá entrar contra a vontade deles.
A segunda teoria é a da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Significa dizer: a constituição está no topo do sistema jurídico, ela incide sobre todos os demais ramos do direito, não há relação jurídica que possa legitimamente pretender estar fora da incidência e do regime jurídico da constituição. E, como conseqüência, a Constituição aplica-se a todas as relações.
E a terceira tese é a da denominada eficáfia mediata ou indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Por esta formulação, que é a formulação que vigora na Alemanha, os direitos fundamentais se aplicam nas relações privadas, mas não diretamente. Eles se aplicam pela atuação do legislador infraconstitucional e se aplica pela atuação do judiciário na medida em que o judiciário deve interpretar as normas do direito civil notadamente as cláusulas gerais do direito civil - boa-fé, função social - de modo compatível com o que dispõe a Constituição. O exemplo jurisprudencial que ilustra esta tese é um caso ocorrido na Alemanha e julgado pelo tribunal constitucional, conhecido como o “o caso Lud”. Neste caso esse cidadão de nome Lud, que era presidente de um clube de imprensa, de um órgão associativo de imprensa, deflagrou uma campanha contra a exibição de um determinado filme, cujo diretor havia feito uma peça anti-semita de apoio a Hitler, durante o domínio nazista na Alemanha. E, portanto, esse jornalista passou a defender o boicote à exibição desse filme, pedindo à população que não prestigiasse o filme. A empresa distribuidora entrou com uma ação judicial, na qual pediu que se determinasse que o Lud se abstivesse de difundir o boicote porque o Código Civil alemão proíbe que alguém, deliberadamente, tente causar dano a outrem. E, indiscutivelmente, o Lud estava pretendendo causar um dano ao produtor daquele filme, impedindo que o público acorresse à exibição. Na estância ordinária venceu a produtora e foi dada a ordem para que o Lud se abstivesse de liderar a campanha pelo boicote. Porém, o Tribunal Constitucional Federal alemão reverteu a decisão sob o fundamento de aquela norma do Código Civil deveria ser interpretada à luz da Constituição, e a Constituição assegurava a liberdade de expressão e de opinião, que era o caso envolvido. E, portanto, ninguém pode, diz o Código Civil, causar deliberadamente dano a outrem, salvo no exercício legítimo da sua liberdade de opinião. E, portanto, esse foi o grande precendente que transplantou para o direito privado e para as relações privadas a idéia de que elas também deveriam ser regidas pelo direitos fundamentais. A verdade é que, nada obstante como opção ideológica e filosófica que se possa e - a meu ver - que se deva fazer pela aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais, todas as relações, eu diria, prima facie, é como eu pensaria essa questão, é preciso identificar que há situações que merecem destaque e o conceito chave nessa matéria continua a ser, volta a ser o da ponderação. Vejam, há situações em que a norma constitucional claramente não incide sobre a esfera privada. O princípio da legalidade administrativa, que é uma garantia fundamental não se aplica às relações privadas; o princípio da anterioridade da lei tributária, evidentemente, não se aplica às relações privadas. Portanto, há consenso que um conjunto importante de direitos fundamentais, por definição, somente se aplicarão às relações Estado/particular, em nenhuma hipótese se aplicarão às relações entre particulares.
Há casos em que, inequivocamente, os direitos fundamentais devem se aplicar diretamente às relações privadas. O direito de propriedade, por evidente, que é oponível entre particulares; mas, outros direitos, como o direito à honra, o direito à integridade física eles estão lá para proteger as pessoas não apenas em face do Estado, mas também em face dos particulares. Ninguém pode celebrar um contrato de trabalho prevendo que no caso de atraso, no caso de multa sujeitar-se-á a sanções de espancamento, ou a sanções de insultos morais, por que? Porque esses são valores que devem presidir todas as relações, inclusive as relações de natureza privada.
Em terceiro lugar, há relações privadas em que o legislador já atuou, há situações em que o legislador já disse não é possível nas relações privadas discriminar em função da raça e, portanto, já houve a intercondição legislativa. Ou o legislador estabelece: é crime a interceptação telefônica feita entre particulares sem autorização judicial. Portanto, há dificuldades em formular uma regra geral porque há situações singulares. Porém, penso que uma boa forma de colocar essa matéria (e aqui eu termino) é de que, como regra geral, as relações privadas devem mesmo se reger pelo princípio da autonomia da vontade. E como regra geral, os direitos fundamentais devem ser aplicar, sim, em todas as situações da vida. Bom, eu acabo de criar duas regras que estão em conflito. Pois bem, toda a moderna dogmática constitucional procura demonstar que quando duas regras entram em conflito o que se deve fazer é uma ponderação de valores. E, portanto, diante do caso concreto, será a hipótese de se ponderar qual o valor deverá prevalecer: a autonomia da vontade, que é uma garantia constitucional, ou o direito fundamental envolvido, que pode ser o princípio da isonomia, pode ser a liberdade de expressão, pode ser diversos princípios. Evidentemente, é possível até mesmo estabelecer, doutrinariamente, algumas regras de desempate. Eu certamente imaginaria que nas relações não horizontais, nas relações onde haja desigualdade flagrante entre as partes o intérprete deverá tender para a preservação dos direitos fundamentais em lugar da autonomia da vontade. Ou seja, onde há desigualdade entre as partes a autonomia pode ser perversa e os direitos fundamentais podem ser a única forma de se equilibrar. Nas hipóteses - e o Código Civil já prevê isso - em que haja uma manifesta injustiça numa determinada relação e seja possível detectá-la o desempate na ponderação deverá ser em favor dos direitos fundamentais. E, evidentemente, quando o conflito for entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade o desempate deverá ser em favor do direito fundamental. Essas regras não são positivadas e, a rigor, a meu ver, não são positiváveis, porque somente à vista do caso concreto será possível produzir a solução constitucionalmente adequada. Eu já contei aqui mesmo um exemplo concreto, um pouco caricato de ponderação, mas como possivelmente era um outro público, quem já ouviu me desculpe, mas acho que é extremamente ilustrativo de como no moderno direito constitucional há situações em que a solução não pode ser encontrada na norma, a solução só pode ser encontrada à luz dos elementos do caso concreto e será produto de um razoável exercício de discricionariedade por parte do intérprete. Eu até acabei de escrever um trabalho sobre esse assunto, e usei esse exemplo, que é o exemplo algo caricato do ministro de Estado que é visto saindo de um motel de Brasília acompanhado de uma senhora. Eu digo de uma senhora para não trazer complicações desnecessárias ao nosso exemplo. Saindo desse motel de Brasília, acompanhado de uma senhora, essa alta autoridade da república é fotografada por um jornalista que vinha passando no local. E o jornalista está escrevendo, para mal dos pecados do nosso ministro, uma matéria chamada a infidelidade e o poder. E o ministro fica sabendo que estará na capa da próxima edição dessa revista semanal que sai no sábado. Ele ali, embaixo da placa - Motel ... - cabelos molhados: impossível negar. Na quarta-feira o ministro toma conhecimento que vai sai a matéria e ele corre ao poder judiciário com uma medida judicial cautelar e pede ao juiz que impeça a publicação da matéria e invoca os seguintes fundamentos: eram onze horas da noite, portanto, fora do horário do expediente; ele está no seu carro particular - não era o carro do ministério; e “ninguém tem nada com a minha vida particular, ninguém tem direito, ninguém tem interesse legítimo em saber o que eu faço fora do meu expediente de trabalho. Portanto, a publicação da matéria é altamente violadora do meu direito de privacidade”. O órgão de imprensa, tomando conhecimento da cautelar, imediatamente entra com uma petição: não, absolutamente, essa é uma questão que envolve liberdade de expressão e direito de informação - liberdade de informação. Em nenhuma hipótese o juiz pode impedir a publicação dessa matéria. Esse é um caso que, se não é real é plausível, e, em outro cenário, em outras circunstâncias, é um caso em que um juiz estará sujeito a ter de decidir.
Eu acho que se nós ouvíssemos a opinião das pessoas aqui presentes provavelmente haveria uma grande discensão. Muitas pessoas achariam que a matéria não poderia ser publicada, e muitas achariam que poderia ser publicada. Esse é um dos grandes problemas dessa interpretação constitucional que flexibilizou, que passou a ser feita com base em ponderação. É que aqui, mais do que nunca, cada cabeça uma sentença. Pois bem, eu como jornalista jamais faria essa matéria. Acho o fim da picada alguém praticar uma conduta jornalística dessa natureza. Mas como juiz eu não daria a liminar em princípio. E não daria a liminar pela seguinte razão: como não há uma solução previamente estabelecida no ordenamento, a legitimidade da decisão é a capacidade que o intérprete tem de convencer o seu interlocutor e um auditório esclarecido de que produziu a melhor solução. Porque se não produziu o tribunal pode rever, portanto ele precisa convencer as partes; bom, uma das partes não se convence nunca, mas é preciso convencer a comunidade jurídica, em geral, e ao seu tribunal. Pois eu diria: não daria a liminar, por três linhas argumentativas. A primeira: o fato era verdadeiro. De fato o ministro estava saindo do motel. Segunda linha argumentativa: o conhecimento do fato foi obtido por meio lícito, porque se tivesse sido ilícito eu não exitaria em dar a liminar. Se fosse uma gravação clandestina, uma invasão de domícilio eu não teria nenhuma dúvida. Em terceiro lugar - e, talvez, a mais relevante: para mal dos pecados do nosso ministro, há sim interesse público em saber com quem ele se deita, porque, suponham, fosse o ministro dos transportes e houvesse uma grande licitação em curso no Ministério dos Transportes, e um dos licitantes estivesse se valendo de um recurso, digamos assim, não previsto no edital. A privacidade das pessoas que ocupam cargos públicos é aferida por uma medida diversa da privacidade das pessoas que não ocupam cargos públicos. Portanto, nesse conjunto de dificuldades, gostaria de passar pelo papel de que eu vim para explicar, não para confundir; mas a verdade é que essas idéias e esses conceitos eles são novos, sobretudo novos na dogmática jurídica brasileira. Nós estamos pensando como isso vai funcionar e, ao mesmo tempo, estamos vivendo esses fatos e está-se criando uma dogmática jurídica que procura ordenara as idéias e estabelecer valores para a ponderação de valores, para a teoria da argumentação e para os limites da aplicação privada dos direitos fundamentais.
São essas as idéias que eu gostaria de compatilhar com vocês e agradeço muito o convite.
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Contrato, titulariedade e família: da codificação a constitucionalização
É um imenso prazer estar aqui nesta comunhão de interesses e propósitos e sob a liderança do Desembargador Sergio Cavalieri Filho. Aqui sempre emerje - e bem. E nós, de fato, nós sentimos em casa; e, sentir-se em casa, me permitam cumprimentar a todos que estão participando desse evento, que estão à mesa; e saudar de modo especial os meus dois queridos amigos, Luís Roberto Barroso e Lenio Luiz Streck. Não poderia ser mais oportuna a presença de ambos para que nós todos auríssemos o estágio atual da arte nessa discussão sobre a constitucionalização do direito civil e, portanto, do direito privado. De um lado, a presença do sr. Lenio, que indiscutivelmente é uma das maiores autoridades em hermenêutica jurídica desse país, que traduz um dos grandes desafios que nós todos estamos nesse exato momento chamados a enfrentar, que é o de transformar o Código Civil sancionado em 10.01.2002, e que entrou em vigor agora, no dia 11.01.2003; transformar este Código em efetivamente lei, tomada a sua densidade concreta. Porque como nós sabemos, um código não nasce Código; um código se faz Código pela operação cotidiana daqueles que labutam com o direito. E é nessa perspectiva que a tarefa do hermeneuta - uma tarefa que é crítica e construtiva; falar-se, aliás, em hermenêutica é crítica e construtiva chega a ser quase um pleonasmo porque ela é, na verdade, a não reprodução do saber e quem não reproduz o saber há de tomar em primeiro lugar o desafio de conhecer o que está a fazer para transformá-lo. É por isso que em relação ao Novo Código não se pode dizer, como dizia alguém de alguns livros, quando perguntado o que achava e que respondia: não li e não gostei. Em relação aos dois mil e tantos artigos do Código Civil nós precisamos necessariamente conhecê-los e aliás, um bom começo, é começar pelo fim. São os últimos artigos, a partir do art. 2028, que tratam precisamente desse momento que estamos a vivenciar, que é o Código antigo que declina e o novo que vai se estabelecer. Essa passagem ou essa crivagem de direito intertemporal está a demandar, seguramente, um trabalho de compreensão e há artigos e dispositivos, nisso que com alguma analogia da Constituição estamos chamando de atos civis das disposições finais transitórias; nesse conjunto de dispositivos, a exemplo do art. 2035, para o qual a leitura desde logo chamo a atenção, que contempla as regras fundamentais para compreender esse momento que vivenciamos. Por essa razão, estar aqui ao lado do sr. Lenio, é de fato um alegria, uma honra e não poderia ser mais oportuna a possibilidade de falarmos hoje numa hermenêutica, exatamente porque nós estivemos entre aqueles que não apenas criticaram o projeto, como sustentaram até mesmo, num dado momento, a sua inconstitucionalidade. Mas, agora, legem habemus, e como dizia o Ministro Carlos Maximiliano, a primeira tarefa do intérprete é tentar reconstruir o dispositivo legal, tentar dar-lhe um significado que aquele significante possa ter porque o contexto histórico /social/econômico é de fato outro. E é por isso que a hermenêutica aparece como, de fato, um grande horizonte nessa perspectiva.
A presença e a alegria de estar ao lado, do também amigo Luís Roberto Barroso, não é menor porque no direito constitucional foi no Brasil um dos primeiros que, ao olhar esse universo pela mirada do direito constitucional, mostrou que entre o direito constituicional contemporâneo no Brasil e o direito civil contemporâneo, esse que não se conforma com a manualística pedestre dos quadrinhos de resumo ao final dos capítulos, esses dois direitos contemporâneos tinham muita coisa em comum. E o que tinham em comum era precisamente a angústia de compreender que tanto no direito privado quanto no direito público, mas de um modo especial, no âmbito do direito civil, o conjunto de soluções formais apriorísticas, que caracterizava uma unidade normativa codificada, tinha perdido o seu cetro, a coroa e muito das suas jóias. Na verdade, essa perspectiva, que era a perspectiva que fundou o movimento das codificações, levasse em conta algo que, ilusoriamente, se nos dava uma segurança jurídica mais aparente do que real - qual seja, a de dar respostas prévias a questões posteriores. O conjunto de juízos apriorísticos levou alguns codificadores - lembremo-nos do caso do código civil argentino, cujo projeto original tinha mais de quatro mil artigos; e do esboço de Teixeira de Freitas; a idéia, de fato, era apresentar um conjunto de respostas prévias aos problemas que, sequer, haviam se colocado.
Ora, é precisamente essa perspectiva que estabelece um diálogo e uma comunhão entre o direito civil e o direito constitucional, fundados na contemporaneidade, fundados na idéia de que as normas constitucionais são para valer, fundados na idéia de que princípio constitucional é norma, fundados, portanto, na idéia de que o direito constitucional é, de fato, o conjunto dos princípios que governam a sociedade e que estabelece um pacto que corresponde a limite de possibilidade dessa mesma sociedade. E mais do que isso: a comunhão que estabelece nessa perspectiva, tem nas diretrizes da obra do professor Luís Roberto Barroso, a idéia da efetividade funcional, eis que não se pode a rigor falar de um direito constitucional que apenas se formule na sua abstração, despido de qualquer concretude, porque estaremos, de novo, repetindo fórmulas gerais e abstratas. Daí, porque, e, à guisa de introdução, digo da minha alegria de estar aqui, de poder ouvir a ambos e voltar a esse ambiente, cuja emoção sempre nos toma conta porque aqui verdadeiramente estamos entre amigos e entre educadores, porque me permito dizer - e disse isso aos magistrados que participaram conosco da atividade, aqui no Mestrado, na semana passada - é uma vã ilusão entender que educação jurídica se resume nas salas de aula. Aliás, em algumas salas o que se faz é deseducação jurídica. A educação jurídica é, na verdade, uma tarefa cotidiana de todos nós; do juiz que sentencia, atende a sua consciência cidadã e, ao mesmo tempo, de um modo prospectivo, sabe que ali está colocando a sua contribuição, ainda que seja uma gota d’água, eventualmente, um grão de areia, mas está dando a sua contribuição para que ao final da sua vida, no testamento da sua consciência, possa dizer com tranqüilidade aos seus filhos que cumpriu a sua missão, ou, como já disse alguém, há muito tempo atrás, combateu o bom combate. É nessa perspectiva que, portanto, estamos todos voltados a essa tarefa de educar. E é claro, que é preciso, nesses tempos que vivemos, pensar também com a cabeça nas nuvens, mas os pés no chão; como, aliás, advertia Saramago: em matéria de tempestade, quem singra o mar é bom ter a costa sempre a vista. E, nessa medida, não deixar de navegar, mas também não deixar de ter a percepção histórica de que nós estamos neste país, nesta cidade e neste momento histórico, que é um momento singular do começo de um século, que nasce sob o signo, no direito privado da constitucionalização e, ao mesmo tempo, com uma nova codificação que há de ser subssumida a uma hermenêutica axiológica e principiológica de índole constitucional.
Dito isso, gostaria de dizer-lhes que em mais 22 minutos e 35 segundos vou procurar expor três horizontes fundamentais de idéias no tema que nos concerne.
Num primeiro momento, uma reflexão, ainda que breve sobre esta idéia da constitucionalização e o seu surgimento no Brasil.
Num segundo, como se caracteriza esta circunstância e quais são, por assim dizer, o conjunto de elementos que configuram o que podemos chamar de constitucionalização.
E, em terceiro e último lugar, uma visão crítica, também, disso que chamamos de constitucionalização, porque não é possível avançar se nós mesmos não submeter-mos os nossos próprios argumentos e a nossa defesa a uma autocrítica e a uma inferência da validade dos seus pressupostos e premissas.
Nesse primeiro quadrante, uma observação que vai certamente ao encontro do que aqui já foi dito, que este fenômeno da constitucionalização é indiscutívelmente um fenômeno da contemporaneidade. Nós estamos a vivenciar nas famílias romano-germânicas ocidentais, um fenômeno que desloca, como disse o professor Barroso, a centralidade da regulação das relações jurídicas, inclusive as interprivadas, para fora daquele lugar central, reservado às codificações privadas. Isso teria, quem sabe, motivado um professor emérito da Faculdade da USP que, em 1975, descreveu ele, um grande amigo nosso e civilista, um artigo na Revista dos Tribunais, cujo título era uma pergunta: o direito civil tende a desaparecer? Essa pergunta, por uma metáfora analogia, foi respondida, sem querer que fosse, na verdade, a resposta, por um trabalho alguns anos mais tarde, traduzido e publicado no Brasil, e distribuído aos assinantes da Revista VEJA, num livro chamado “VEJA: 25 anos”; e nesse livro havia um texto da historiadora francesa, Michelle Pierrot, que se chamava “O nó e o ninho”. Curiosamente, ela se fazia uma pergunta e, por isso, digo que a resposta pode ser encontrada por metáfora, por analogia; ela se perguntava: a família tende a desaparecer? E o próprio título do trabalho dizia - “O nó e o ninho” - que na verdade, defendia ela, com todo acerto em nosso modo de ver, que desatam-se alguns nós, desaparece um determinado conceito de família, mas a idéia e a concretude da família continuam mais atual do que nunca. Aliás, se revaloriza quando se valoriza a ......, quando se valoriza a idéia de que casar é um ato de liberdade, como um ato de liberdade e de responsabilidade também é o de permanecer casado, porque alí, por sobre os vínculos formais, o que nós valorizamos é um elemento sócio-afetivo, que dá idéia de uma comunhão a quatro mãos que se constrói, que é na verdade a ratio do casamento, que é ratio das uniões não matrimonializadas, que também fundam o casamento; das famílias monoparentais, que também formam família, e assim por diante.
Ora, transposta esta idéia para aquela pergunta se o direito civil tendia a desaparecer, podemos dizer que o direito civil, fundado na idéia de que o direito se resumia à codificação, fundado na idéia de que ensinar o direito civil era apenas conhecer o Código, isso, de fato, passou a ser uma página, praticamente, virada da nossa história.
Mas, o direito civil numa outra mirada, com essa índole de natureza constitucional, com a perspectiva de não se propor a formular aprioristicamente as respostas e os conceitos, esse direito estava e estará mais atual do que nunca.
Dou-lhe alguns exemplos: num deles, não faz muito tempo, no STJ, o Ministro Rui Rosado de Aguiar, considerou incerta, inserida no conceito de família, o fato de dois irmãos juntos viverem e constituíam, segundo ele, família para efeito de proteção legal à luz da lei que tutela o bem legal de família. Ora, percebe-se aí, portanto, o que esse tipo de reflexão já se projeta na jurisprudência. Não é um conceito a priori que se tem de família, mas um conceito que se constrói, e por isso se valoriza sobremaneira a atividade criadora da jurisprudência. E é nessa perspectiva, portanto, que nós estamos a falar, desses fenômenos que, portanto, .... o desenvolvimento do direito civil, renovam e reformulam as suas bases e, falamos, então, hoje no direito civil contemporâneo, que nasceu por agora; por certo estava, na década de setenta, na Itália, nas obras de Pietro Barcelona, Natalino ..., Pietro Perlingieri; nas obras, em Portugal, de Orlando de Carvalho e, mais recentemente, do professor Joaquim Ribeiro de Souza; em alguns professores aqui da América: Marcela Castro de Cifuentes, na Colômbia, Carlos Fernández Sessarego; na Argentina, Ricardo Luis Lorenzetti, Jorge...., para citar alguns; no Brasil, e para citar aqui, o professor Gustavo Tepedino; enfim, um conjunto de idéias que vai aos poucos se formulando e que, enriquecendo, precisamente nessa possibilidade de dar um suporte doutrinário à concepção, segundo a qual, as relações interprivadas não estão mais subssumidas apenas a uma unidade normativa codificada, que apresenta respostas apriorísticas para todas as soluções e para todas as situações concretas. Se isso aumenta a incerteza e a insegurança, nós percebemos que, de fato, o direito deixa de considerar os sujeitos como cidadãos, virtuais e abstratos, para ver que a condição humana de carne e osso é recheada de incerteza e também de insegurança. Isso nos mostra, portanto, que o direito se vale de critério de verdade, mas que jamais encontrará a verdade propriamente dita, porque situações há em que soluções antagônicas são possíveis no juízo, por exemplo, de ponderação de valores ao qual o sr. Luis Roberto acaba de referir-se. Nesse sentido, portanto, essa idéia da constitucionalização formou razoavelemente uma base doutrinária. Além disso, do ponto de vista jurisprudencial, citei o exemplo do acórdão do Ministro Rui Rosado de Aguiar; há, desde 1991 para cá, votos expressivos da autoria, da lava do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, especialmente em matéria de família, quando o STJ passa a admitir, por exemplo, ação de investigação de paternidade em face dos demandos, suposto genitor, casado com outra mulher, que não a mãe, que é a representante legal do investigante naquela demanda, superando, portanto, aquele artigo ou dipositivo de interdição, que era o art. 358, do Código Civil brasileiro; esse tipo de pronunciamento jurisprudencial, já é o nascedouro, ou já é uma sintomatologia desta ordem de idéias que vai aos poucos se colocando.
E no campo legislativo temos, não apenas a Constituição Federal, de 1988, porque a Constituição não é apenas a Constituição Federal de 1988; temos, na verdade, um marco legislativo impressionante no Brasil que, na verdade, divide a história republicana brasileira, e se projeta como um divisor de águas não apenas para o passado, mas também para iluminar um pouco do nosso futuro ainda por construir. Nessa perspectiva do ponto de vista legislativo há uma base constitucional, há uma base do que se chamou dos microssistemas e que já foram mencionados: Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Companheirados ou dos Conviventes, para citar apenas alguns exemplos, que são ou devem ser, necessariamente atualizados, mas o seu fio condutor está centrado nessa principiologia axiológica de índole constitucional. É aí que chegamos no presente que vivenciamos. Vale dizer, vivemos, então, esse momento ao mesmo tempo interessante e paradoxal. Vivemos um momento em que temos uma base doutrinária, legislativa, de indicadores jurisprudenciais da constitucionalização do direito civil, do direito privado; e, ao mesmo tempo a vigência, de uma nova codificação que procura, por exemplo, ao manter a parte geral, manter aquela idéia fruto da pandectística alemã, em face da qual era possível enjaular um conjunto de definições, o conjunto das situações especiais e específicas da codificação, em matéria de personalidade, capacidade, patologia dos negócios jurídicos, da relevância jurídica do fluir do tempo, nulidade, anulabilidade e assim por diante. É esse tempo, de um certo paradoxo, que desafiam o nosso trabalho que é de fato um trabalho de construção.
Mas, colocadas as coisas nesses termos, em segundo lugar, podemos, então, quiçá, indicar quais são as três perspectivas, ou quais são os três elementos que caracterizam o que podemos chamar de constitucionalização do direito civil. Esses três elementos ou três horizontes que vou citar têm um pressuposto que é o direito constitucional como direito operativo; ou, em outras palavras, toma como pressuposto que o princípio ou a regra constitucional deve operar nas relações interprivadas. Talvez os senhores estejam lembrados que, logo que a Constituição foi publicada, escreveu-se no Brasil, vozes autorizadas da doutrina do direito civil, que nós não podíamos, por exemplo, aplicar de imediato o princípio da igualdade entre o homem e a mulher porque o Código Civil não havia sido alterado, e defendia-se, então, a idéia de que não seria possível, nem mesmo o julgador aplicar o princípio constitucional porque isso representaria - e essa expressão foi usada - um salto sobre o legislador ordinário. Evidente, que nós, em momento algum, estivemos entre aqueles que subscreviam essa ordem de idéias, mas de qualquer sorte, em muitos dos nossos manuais, continuaram ainda a ser evidenciadas as razões, não apenas diferenciadoras, mas discriminatórias da condição feminina, dizendo, por exemplo, que enquanto não se alterasse o Código Civil a Constituição previa uma igualdade de direitos, mas não uma igualdade de exercício, o que significava, na prática, fazer uma tábula rasa dessa grande conquista que, aliás, era prévia à própria Constituição porque era um imperativo de dignidade ética e humana entre o homem e a mulher que, embora diferentes, são substancialmente iguais.
Nessa perspectiva, portanto, a premissa desses três elementos, ou desses três horizontes é tomar a Constituição com o seu valor operativo. E é nessa dimensão que entendemos que os princípios constitucionais são vinculantes, como, alíás, desde algum tempo defendeu-se, em Belo Horizonte, já em 1986, numa tese apresentada pelo desembargador Francisco José Ferreira Muniz, do tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que foi o nosso professor de direito civil, que princípio constitucional é norma e, portanto, vinculante ao intérprete ou aplicador.
Quais são esses três horizontes da constitucionalização? Em primeiro lugar, ao falarmos de constitucionalização estamos a falar de uma dimensão que é correta, embora seja insuficiente, que a sua dimensão de natureza formal; vale dizer: constitucionalização pode representar nessa primeira dimensão correta, mas incompleta; pode representar a idéia de que os princípios ou regras estão expressamente positivados no texto constitucional. Assim, por exemplo, os direitos fundamentais da caput do art. 5º; a função social da propriedade, a partir do art. 180 e seguintes; os artigos que cuidam da ordem econômica e assim por diante. Esses preceitos, por assim dizer, contidos nesses enunciados expressos corresponderiam a essa idéia primeira, como disse, correta, mas incompleta, de uma constitucionalização no seu sentido formal.
A isso se agrega uma segunda dimensão, uma segunda caracterização do que podemos chamar de constitucionalização. É a percepção da constituição no seu sentido substancial. Antes, lhes disse, de passagem, que a Constituição não é apenas a Constituição Federal de 1988; podemos dizer, portanto, que a Constituição não é apenas o seu texto positivado e impresso. Até porque há princípios que são funcionais, que decorrem de princípios constitucionais e expressos. O exemplo, acabei de citar o Superior Tribunal de Justiça que passou a admitir a investigação de paternidade em face de genitor casado com outra mulher que não a mãe da criança que representa a criança investigante. Esse princípio atende a um princípio constitucional expresso que é da igualdade entre as diferentes espécies de filhos, mas também atende a um princípio constitucional implícito que é o princípio da inocência que, embora pareça uma palavra, digamos, inocente mas na verdade tinha toda uma percepção de juízo negativo à luz daquele sistema anterior do Código Civil de 1916, à luz do art. 358, quando não admitia o reconhecimento de filhos extramatrimoniais quer fosse esse reconhecimento forçado, quer fosse o reconhecimento voluntário. Ora, se A e B tinham um filho, à luz daquele dispositivo 358 e se realizava, portanto, essa façanha genética, o não reconhecimento da criança fazia com que a criança não pudesse buscar a revelação da sua paternidade e, de certo modo, era a criança, por assim dizer, sancionada pela conduta - que se há alguém para ser sancionado certamente não é aquele que depende dessas circunstâncias que são as esquinas da vida que têm mais dobras do que a vã imaginação do legislador possa operar.
Ora, nessa perpectiva, portanto, há uma segunda dimensão da constitucionalização, que é essa que não permite resumir a constitucionalização à sua dimensão apenas de ordem formal e alcança também uma dimensão material ou substancial.
E em terceiro e último lugar, falar-se em constitucionalização significa distanciar-se da idéia de que nós estamos apenas a nos referir a um marco histórico, como o da Constituição Fedral de 1988. A constitucionalização é na verdade o reconhecimento que hoje mais que ontem, quiçá, menos que amanhã, o direito, de um um modo geral, mas o direito civil de um modo substancial é um direito que se constrói e reconstrói continuadamente. Se os senhores lembrarem (os que leram certamente lembrarão), o conto da ilha desconhecida de Saramago, que mencionei antes e menciono novamente agora; e que desejava um barco, uma nau para ir até a ilha desconhecida, e o rei, depois de várias negativas, lhe concedeu o barco, intrigado para saber qual era a ilha desconhecida. E eis que numa bela manhã, vai singrando ao mar um barco, uma nau cujo nome era “a ilha desconhecida”. De modo que muitas vezes se percebe que o ponto de chegada não é exatamente o outro lado da margem, também não é a terceira margem do rio, de Guimarães Rosa; mas o ponto de chegada é, a rigor, sempre uma estação que se reconstrói quando se se aproxima daquele denominado ponto, daquela denominada margem; vale dizer, é uma alavanca contínua de construção e reconstrução dos conceitos. Exemplo disso: o Supremo Tribunal Federal, na súmula 621, os senhores bem se lembram disso, não admitia, por meio de embargos de terceiros, proteção possessória ao promitente comprador se o compromisso não estivesse registrado. Que orientação era essa? Orientação coerente com a idéia do Código Civil, da formalização dos registros e, evidentemente, coerente com a formalização que daí se exigia à luz do pensamento do Ministro Moreira Alves, o inspirador dessa ordem de idéias, coerente, claro, com a ordem de idéias do século XIX e, obviamente, por aí se estacionou. Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça começa a aplicar esses temas e edita a Súmula 84, que reconhece a boa-fé, que reconhece o fato do compromisso estar quitado, que reconhece a posse como uma circunstância pública e notória e passa a admitir os embargos de terceiro independentemente do registro para tutelá-lo - não o senhor, mas o possuidor, na forma do artigo 1046, do Código de Processo Civil. Ora, isso significa portanto, que essa ordem de idéias vai evidenciando que esse direito se constrói e reconstrói a partir da formulação doutrinária, da formulação jurisprudencial e muitas vezes da formulação legislativa.
E são esses três horizontes que nos parecem indicar as características desse movimento de constitucionalização.
Para arrematar, talvez, caberia, então, em terceiro e último lugar perguntar para onde vamos, nesse momento, em matéria de constitucionalização do direito privado. A perspectiva que se coloca há de colocar também em autocrítica a idéia de que não se pode fazer tudo migrar para o direito constitucional, sob pena de criarmos uma macrocodificação, sob pena de trocarmos o significante código por Constituição e o significado não se alterar. Na verdade, talvez marchemos muito mais para aprofundar esse fenômeno, muito mais para, agora, à luz do Novo Código Civil brasileiro compreender que de fato o caminho vai se fazer caminhando, na perspectiva de um direito cujos princípios e regras estão seguramente sendo continuadamente reconstruído. A crítica que há de ser feita, portanto, é que não se pode resumir esse fenômeno todo a um texto constitucional expresso e o nosso desafio é compreender ou tentar vivenciar com alguma tranqüilidade - porque, evidentemente, que dissipar a angústia é impossível; aliás, um pouco de angústia é sempre salutar e criativa - para que nós possamos, nessa perspectiva, edificar, na prática, o Código do século XXI, subssumido a uma principiologia axiológica de índole constitucional. Principiologia para valorizar os princípios constitucionais como, por exemplo, o da igualdade; axiológica, porque todo juízo é um juízo de valor: quem diz alguma coisa diz, ainda que não diga expressamente, porque diz nas entrelinhas, diz, mesmo não dizendo. Aliás, o discurso jurídico é pródigo em dissimular: não raro, diz-se algo querendo dizer outra coisa e, muitas vezes, diz-se a outra coisa para dizer algo que não foi dito. Não raro, na sentença muita outra adjetivação gostaria o juiz de ali inserir, mas ele se queda, comedido; o advogado, também, poderia assim proceder. De modo que o discurso jurídico, não raro, é um discurso que na sua aparência não revela o que está na sua essência. E talvez é isso que, do ponto de vista humano, nos chame mais a atenção nesse momento. Nós vivemos um momento em que se volta a enfatizar a idéia do direito como técnica, a idéia do direito como instrumento, a idéia do direito ligado à eficiência, como se a eficiência pudesse ser desconectada da idéia de justiça. Mais do que nunca é preciso dizer que o direito está no campo das ciências humanas, está, portanto, também no campo da arte, está, portanto, no campo atinente à condição humana que não se submete a equações lógicas pré-ordenadas, embora, evidentemente, que componha um sistema que torne a vida social possível, um sistema aberto, poroso e plural, que permita que todos nós façamos um pouco menor a tragédia humana contemporânea; que nos permita aqui, hoje, discutir um Código, quando nesse momento, pessoas que nós sabemos aonde, a vida estão perdendo, para que nós não percamos não apenas a esperança, mas não percamos a confiança e a fé de que somos protagonistas de alguma história. Muito obrigado.